Wederson de Souza Gomes, Assistente de Comunicação da Revista Almanack, Doutor em História pela UFOP, Ouro Preto, MG, Brasil.
[WEDERSON DE SOUZA GOMES] O bicentenário da Independência do Brasil tem evidenciado a participação das mulheres no contexto da separação política entre os reinos de Brasil e Portugal. Qual a sua visão sobre a historiografia acerca da participação das mulheres naquele contexto?
[ANDREA SLEMIAN] O bicentenário tem produzido alterações na historiografia da independência e também algumas alterações na memória oficial da independência. Uma memória que é bastante sedimentada, que, inclusive, foi recriada em alguns momentos da história, mas sempre marcada por uma leitura oficial e oficiosa que se alicerça na ausência de um processo revolucionário, bem como da participação popular, reforçando que a ruptura foi uma alternativa conservadora. O tema das mulheres tem ganhado protagonismo na produção historiográfica e as releituras das independências, as novas formas de compreensão do processo, têm evidenciado a participação de diferentes partes do corpo social, tais como mulheres, afrodescendentes e indígenas. Isso é facilmente percebido nas chamadas que envolvem o bicentenário, cujo material de divulgação busca explicitar outras nuances. Títulos como ‘outros 200’, ‘outra independência’, ‘independências’ e ‘decolonização’ são exemplos das novas abordagens sobre o tema. A valorização do papel das mulheres no contexto da independência se insere nessa ampla conjuntura de transformações e questionamentos acerca da narrativa oficial que se consolidou no imaginário social brasileiro. De certa forma, o tema Independência do Brasil não fala apenas sobre o passado da nação, fala do também do nosso presente enquanto nação, da constituição do Estado do Brasil e todas as questões concernentes que atravessam esse complexo debate.
Figura 1. Jules Antoine Vauthier. Leopoldina, Arquiduqueza d’Austria. Princeza Real do Reino Unido de Portugal Brazil e Algarves, 1817.
[WSG] A história da independência costuma enfatizar o papel da Maria Leopoldina ao tratar do papel das mulheres na independência. Quais os outros caminhos possíveis de abordagens para pensar o papel das cidadãs?
[AS] O caso da Leopoldina é bastante interessante, haja vista que ela se insere na famosa tríade dos acontecimentos da independência, estando ao lado de D. Pedro I e José Bonifácio de Andrada. Um aspecto curioso das produções audiovisuais sobre o tema é de que a ruptura política com Portugal se reduz a um acordo palaciano do qual a Maria Leopoldina fez parte. Portanto, a visão da Leopoldina esquecida no tema da independência é uma frivolidade. Existe outra face desse debate que é o silenciamento e como podemos entender a história das mulheres na temática.
A Leopoldina não foi esquecida no seu protagonismo político, sendo vista como partícipe ativa. No entanto, quando pensamos o papel da imperatriz em uma perspectiva de gênero, fica perceptível que ela não foi tão valorizada como o de outras personagens. A Leopoldina era, naquele contexto, uma mulher, mãe, esposa e estadista e é bastante interessante como ela vai criar e subjetivar seus próprios papéis. Por esse motivo não acredito que ela tenha sido esquecida. Existem formas diferentes de esquecimento, especialmente quando contrastamos com outras personagens. A Maria Quitéria é um exemplo, sobretudo porque ela foi lembrada numa chave valorosa, ocupando o lugar do soldado, sendo inclusive masculinizada. Nesse sentido, falar em cidadãs e falar em mulheres naquele contexto requer que o seu papel seja valorizado, tensionando outras nuanças da atuação dessas mulheres, algo que tem acontecido na produção historiográfica recente.
[WSG] A valorização da participação da mulher na intensa cena pública que se abriu desde o constitucionalismo português, depois da Independência do Brasil, alterou ou pode contribuir para alterar sua condição enquanto sujeito de direito?
[AS] Essa é a questão que move meu interesse nesse debate, especialmente porque é possível observar aspectos que ultrapassam as demonstrações de patriotismo. Exemplifico: eu começo um texto, que em breve será publicado no blog das independências, citando a famosa sugestão do Borges de Barros nas Cortes de Lisboa, em que ele diz que as mulheres também deveriam votar. Eu acho isso bem interessante, porque quando se coloca o tópico da mulher votar, ainda que rapidamente alguns abafassem essa questão, o que está se tensionando é o novo sujeito da participação política. Isto é, participar de forma patriótica, estar presente, isso é um fato. O quanto se você tensiona e faz com que as mulheres ocupem ou se vejam em outros lugares, como aconteceu, por exemplo, no caso francês, no qual as feministas que estudaram e falaram dos direitos universais das mulheres, a gente pode perceber que isto está presente de alguma forma no caso brasileiro.
Sobre a entrevistada
Andrea Slemian é Doutora e Mestre em História pela Universidade de São Paulo. Professora do Departamento de História da UNIFESP e também do Programa de Pós-graduação. Ela é especialista em História do Brasil entre os séculos XVIII e XIX, com ênfase no processo das reformas ilustradas das independências e da formação do Estado nacional, atualmente suas principais temáticas são as análises das instituições de justiça, especialmente as formas processuais, trabalhando uma interface História e Direito. Foi editora-chefe da Revista Almanack (2019-2021) e atualmente é editora-chefe da Revista Brasileira de História da ANPUH, além de ser bolsista de produtividade CNPq. (Lattes / Orcid)
Para compreender um pouco mais sobre a temática, leia os artigos
SLEMIAN, A. Seriam todos cidadãos? Os impasses na construção da cidadania nos primórdios do constitucionalismo no Brasil (1823-1824). In: István Jancsó. (Org.). Independência: história e historiografia. 1ª ed. São Paulo: Hucitec, 2005.
SLEMIAN, A. O paradigma do dever em tempos de revolução: D. Leopoldina e o
sacrifício de ficar na América. In: KANN, B. and LIMA, P.S. (org.). Cartas de
uma imperatriz. São Paulo: Estação Liberdade, 2006,
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