A estética como combate ao negacionismo científico: Whitehead, Latour e a ciência contemporânea

Thiago de Araujo Pinho, Professor do departamento de sociologia do Centro Universitário Senai Cimatec em Salvador, Bahia. 

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Diante da insuficiência dos parâmetros que rondam a Teoria Social, assim como várias tradições filosóficas, algumas perguntas mais contemporâneas podem ser feitas: por que muitas pessoas lá fora negam a ciência, principalmente quando pensamos na vacina, nos benefícios do lockdown e em outras medidas sanitárias? As duas respostas que rondam os corredores de cursos de ciências humanas e sociais sempre foram as mesmas: ou epistemológica, ou ética. 

Em outras palavras, diante do gesto negacionista temos duas possíveis explicações. Na primeira delas, as pessoas têm algum problema cognitivo, gerado pela falta de conhecimento ou reflexo de alguma interferência estrutural, ou sistêmica, alienando completamente suas escolhas, em uma resposta mais sofisticada. Na segunda, elas têm algum problema ético, resultado de um esforço maldoso e insensível diante dos benefícios da vacina, em uma resposta mais vulgar. 

Seguindo uma linha whiteheadiana e latouriana, o problema atravessa outros territórios. Em que medida os negacionistas são afetados pelo discurso científico? Em que medida a ciência importa? Se ela não faz parte do cotidiano das pessoas, a não ser dissolvida em notícias de escândalo, repletas de intensa desconfiança e acusações, como cobrar que elas “se importem”? Se elas não compartilham do universo científico e de seus vários circuitos, se nem sequer experimentam um aperitivo de suas redes de trocas e experiências, como pedir relevância? 

A confiança exige certas condições de possibilidade, sendo elas estéticas, ao menos no sentido de Whitehead e Latour. Não adianta lançar porcentagens, estatísticas ou outras formas de dados na cara das pessoas, aguardando que alguma revelação aconteça, como se fosse um passe de mágica. É preciso mostrar como as instituições funcionam, como se estabilizam, atuam, reduzindo um pouco nossa obsessão pelo epistêmico, pelo simples verdadeiro ou falso.

Como um exercício mental breve, imagine agora dois namorados. Imagine também que um deles insiste constantemente em provar a sua fidelidade, seja com fotos, vídeos ou áudios, em um gesto obsessivo curioso. Toda vez que sai com os amigos, ele traz provas concretas de onde, como e quando estava. Isso não parece um bom sinal, não é? Confiança não é um dado autoevidente, reflexo de números e imagens, mas todo um percurso complexo, constante e sutil, produto de anos de exposição. 

A rede complexa de humanos e não-humanos que atravessa as muralhas aparentemente frias, distantes, do edifício científico, precisa vir à tona. Como disse Latour no fim da década de 80, é preciso ver a “ciência em ação”, revelando ao mundo seus circuitos, seus sucessos, suas conquistas, suas parcerias, para além de simples matters of fact. A confiança não é uma essência que brota de corações bondosos ou mentes sábias, mas de uma rede material de humanos e não humanos. Em outras palavras, confiança não se pede, muito menos se ordena, mas se conquista. 

Fotografia de uma mão segurando um frasco em um laboratório, que pode ser visto ao fundo.

Imagem: Pexels.

Não é apenas necessário evitar as armadilhas do positivismo, e seus fatos sólidos e autossuficientes, mas é preciso também evitar o outro extremo do problema: o pensador pós-estruturante. Além de apontar dedos, em um gesto puramente ressentido, ao desconstruir tudo aquilo que nos ameaça e desagrada, o que Latour chamou de “iconoclasmo”, o papel dos cientistas humanos e sociais no século XXI precisa de um tom diferente, de cores mais vivas, como amarelo, verde e azul, ao invés do clássico cinza que sempre fez parte do nossa paleta de cores. É preciso ir além do gesto iconoclasta, da simples postura de negação de conteúdos e instituições lá fora, e estabelecer uma síntese, uma saída, algo um pouco mais construtivo. 

Quando termos como “ciência” e “verdade” aparecem em nossas aulas e palestras, como eles aparecem? Nós os transformamos em palavras vivas, que afetam as pessoas, ou apenas em uma brincadeira diferencial de significantes sem graça? Ou seja, a ciência e os fatos “importam” em nossas aulas? 

Em termos zaratustrianos, nas palavras do próprio Nietzsche, chegou o momento de abandonar a era do leão, em seu gesto ressentido, agressivo, evoluindo agora até a última etapa do progresso humano: a criança. Em sua postura completamente estética, a criança ultrapassa os limites de uma dialética negativa, de um puro gozo da negação enquanto negação, propondo novos caminhos, novas formas de afeto, de encontro. 

Se você conhece ou já conheceu uma criança, sabe do que estou falando. Não são puros fatos que interessam a ela, muito menos algum gesto desconstruído e elitista, mas a forma como o mundo esteticamente comunica suas informações, através de cores, gestos, sons e sabores. Ela não quer apenas “analisar” ou “desconstruir” o mundo, mas viver, extraindo da realidade conexões relevantes. Por isso, no universo da criança tudo tem vida, tudo transpira energia, desde animais até cadeiras e carros. Convenhamos que esse mundo é muito mais interessante do que o nosso mundo, seja aquele povoado de fatos brutos ou por jogos de linguagem e relações de poder. De qualquer forma, ambos são entediantes, por mais verdadeiros que sejam.

Quando seguimos o caminho estético de Latour e Whitehead, é preciso evitar tanto o percurso do cientista clássico, aquele repleto de positivismo e sua simples constatação de fatos autoevidentes, mas também é necessário fugir da armadilha do cientista pós-estruturante, em seu mundo de intensa desconfiança. Apesar das diferenças, ambos compartilham de um universo passivo e sem vida, sem graça, ou seja, uma atmosfera sem objetividade, ao menos nos termos de Bruno Latour. 

Como já foi dito ao longo de todo esse press release, antes de sair pelas ruas lançando dados e fatos na cara das pessoas (positivista), ou desconstruindo tudo o que se vê pela frente em uma hermenêutica da suspeita arrogante (pós-estruturalista), é necessário construir um mundo onde fatos “importam”, onde a natureza não é passiva, apenas aguardando o sujeito de jaleco branco ou o indivíduo performático. 

Referências

LATOUR, B. Why Has Critique Run out of Steam? From Matters of Fact to Matters of Concern. Critical Inquiry [online]. 2004b, vol. 30, no. 2, pp. 225-248 [viewed 20 December 2023]. https://www.doi.org/10.1086/421123. Available from: https://www.journals.uchicago.edu/doi/10.1086/421123   

STENGERS, I. Including Nonhumans in Political Theory: Opening the Pandora’s Box? In: BRAUN, B. and WHATMORE, S.J. (eds). Political Matter: Technoscience, Democracy, and Public Life. Minneapolis, London: University of Minnesota Press, 2010.

WHITEHEAD, A. Modes of Thought. New York: Free Press, 1938.

Para ler o artigo, acesse

PINHO, T. Existo, logo o mundo pensa: Whitehead, Latour e a estética científica. Trans/Form/Ação [online]. 2023, vol. 47, no. 3, e0240032 [viewed 20 December 2023]. https://doi.org/10.1590/0101-3173.2024.v47.n3.e0240032. Available from: https://www.scielo.br/j/trans/a/PYHHctCd6GMgZfR6MkFPtYJ/ 

Links externos

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Como citar este post [ISO 690/2010]:

PINHO, T.A. A estética como combate ao negacionismo científico: Whitehead, Latour e a ciência contemporânea [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2023 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2023/12/20/a-estetica-como-combate-ao-negacionismo-cientifico-whitehead-latour-e-a-ciencia-contemporanea/

 

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