Transformações urbanas e escolarização

Paula Leonardi, professora na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Niterói, RJ, Brasil.

Logo do periódico: Revista Brasileira de História da Educação

Escrito por Giullia de Luca e Paula Leonardi, o artigo O destino da casa do Visconde: fins duradouros e patrióticos da educação católica apresenta o Colégio Nossa Senhora de Lourdes, localizado no bairro de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, que atende, desde 1922, vários estudantes de setores médios da população. As questões levantadas nesse estudo, publicado na Revista Brasileira de História da Educação, encontraram uma resposta por meio da análise minuciosa das notícias dos periódicos da época. O Jornal do Brasil, A Cruz e o Jornal do Commercio foram alguns dos impressos consultados. 

 A casa utilizada para a instalação do Colégio era a antiga residência do Visconde de Ouro Preto, importante figura política do Império Brasileiro. Considerado “o valor cultural da chácara e do sobrado que pertenceram ao Visconde de Ouro Preto, como representante da arquitetura carioca residencial semiurbana, de linhas tradicionais em estilo neoclássico”, que “se encontra vinculada à paisagem urbana e cultural existente”, parte das instalações foram tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 2016.

Embora a noção de patrimônio e sua importância não se restrinjam às sociedades modernas ocidentais, modernamente essa categoria teve e tem o efeito de marcar um domínio subjetivo por oposição a um “outro”, por vezes confundindo-se com a noção de propriedade, como se fossem extensões morais de seus proprietários. Como símbolo, o patrimônio detém a função não apenas de comunicar, mas também de agir. Não por acaso a noção de patrimônio constitui-se como categoria ao final do século XVIII, juntamente com a constituição dos estados nacionais. 

A cultura material expressa no patrimônio edificado e sua relação com a cidade contribui para a formação de territórios e territorialidades. Os estabelecimentos escolares são determinados, dentre outros aspectos, por seu contexto socioespacial, que também participa da produção de território. As autoras seguem Milton Santos na definição de território: relações de poder ligadas ao “[…] chão mais a identidade”.  Definir um território implica definir o que nele é valorizado e constituído como patrimônio material ou imaterial, criar signos, construir identidades. 

Os jornais contribuíram para isso ao publicar textos a respeito do Colégio e de seu edifício. Os periódicos noticiavam sobre as disputas políticas do período, principalmente entre a Igreja e defensores da educação laica, sobre as instalações educativas, suas festas e premiações, e participavam, assim, da produção de representações sobre as edificações e seus usos. Como fontes de informação histórica e de propagação de valores no cotidiano da sociedade urbana dos séculos XIX e XX, os jornais condensavam memórias, representações; e é neste espaço formativo e informativo que misturavam tentativas de imparcialidade e o abertamente tendencioso. 

Quando o mais ilustre morador da Vila, o Visconde de Ouro Preto, morreu em 1912, seu filho, Affonso Celso, deixou a casa e a chácara. Em 1915, o empresário cinematógrafo e teatral M. Pinto, do Cine Ideal, instalou-se no local. Em seguida, foi a vez das religiosas. Entre 1890 e 1910, várias chácaras foram loteadas, o que pode ter acontecido com o espaço que abrigava a casa do Visconde. Vilas operárias foram construídas com o adensamento da população, fato que pode ter favorecido a transferência do imóvel. 

O lançamento da pedra fundamental do edifício contou com figuras proeminentes da época: Conde Affonso Celso, filho do Visconde de Ouro Preto e D. Sebastião Leme, bispo do Rio de Janeiro. 

Há um longo texto no Jornal do Brasil, importante periódico da época, sobre o evento e podemos apenas imaginar a quantas pessoas chegou essa representação do edifício e do Colégio. Este é o texto mais marcante analisado no artigo e permite entrever as tensões do período que excluíam, sobretudo, a população negra do direito à moradia, associando-a ao desleixo, à destruição e à imoralidade. O texto é marcado pela crítica ao progresso e à modernidade que arrasam não só a natureza como os antigos casarões. Desaparecem, com eles, as chácaras e os costumes tradicionais, o que seria “[…] uma das grandes tristezas do Rio de Janeiro”.

O passado é aí construído como um tempo bom, memorável, no qual havia “[…] chefes de família […]” e “[…] solares aristocráticos na sua grandiosa simplicidade”. Em contraponto, o presente estava sendo corrompido pela “promiscuidade” da nova época, pois os antigos solares que antes se faziam casas de famílias estavam 

[…] amputados do verde engaste de seus jardins, como despidos brutalmente aos olhos da turba, portas e janellas escancaradas, transbordantes de uma miuçalha maltrapilha, de pretinhos e mulatos, com mulheres descalças, sentadas a soleira e trapos multicolores seccando nas sacadas do sobrado (p. 8). 

Essa “pobre humanidade”, vivendo em condições insalubres, como reconhece o autor, presente em locais que antes frequentavam apenas como empregados, horroriza o escritor, que imputa tal mudança à democracia: 

[…] amontoada sordidamente alli, num esforço desesperado de occupar pelo menor custo o menos espaço possível e a nobreza de linhas, a prodiga amplitude do edifício, é de intensa, de oppresora melancolia. Há uma degradação naquella decadência e há, principalmente, a prova palpavel quasi da irrepreensível evolução do espírito do tempo, do triumpho nivelador da democracia victoriosa (p. 8). 

O cais do Valongo foi o porto que recebeu aproximadamente a metade das pessoas escravizadas que entraram em todo o Brasil. Com o fim da escravidão, o êxodo de pessoas libertas vindas da região cafeeira do estado, associado ao estímulo à imigração pelo poder central com fins de branqueamento, resultou na crise de moradia nas primeiras décadas do século XX. Sem políticas de reparação após o fim da escravidão, essa população estava à mercê da própria sorte. 

O artigo permite entrever certa noção de patrimônio partilhada entre o grupo social ao qual o conde pertencia e a congregação religiosa. Se há uma identidade citadina que se apoia nessa noção de patrimônio do grupo social aqui analisado, ela não é para todos. É o patrimônio como propriedade, e a propriedade (dos nobres ou da Igreja) como pátria. Em que medida essa noção teria se mantido ou em que medida ecoam, nos dias atuais, as representações difundidas naqueles tempos? Esta é uma questão a ser respondida com outras pesquisas.

Sobre Paula Leonardi

Pós-doutora em História da Educação e Historiografia pela Faculdade de Educação USP (2011), com bolsa FAPESP. Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação (Proped/UERJ), pesquisadora dos grupos Focus (Grupo de Pesquisa sobre Educação, Instituições e Desigualdade, FE, Unicamp) e GEHER (Grupo de Estudos História da Educação e Religião, núcleo Rio de Janeiro, Edu, UERJ). Atuou como professora convidada na Universidade Bordeaux Montaigne entre dezembro de 2019 e maio de 2020, com financiamento da Capes Print.

Referências

JORNAL DO BRASIL. Notas Sociaes: Femina [online]. Fundação Biblioteca Nacional (Brasil), BNDigital. 1924, ed. 00306, no. 1, pp. 9 [viewed 15 January 2024]. Available from: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_04&Pesq=&pagfis=34326 

Para ler o artigo, acesse

LEONARDI, P. and MAIA, G.L. O destino da casa do Visconde. Revista Brasileira De História Da Educação [online]. 2023, vol. 24, e295 [viewed 15 January 2024]. https://doi.org/10.4025/rbhe.v24.2024.e295. Available from: https://www.scielo.br/j/rbhe/a/hZwWR53XKQBfcRSz3NYwnMx/ 

Links externos

Revista Brasileira de História da Educação – RBHE: https://www.scielo.br/j/rbhe/

Revista Brasileira de História da Educação – Site: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe/index

Revista Brasileira de História da Educação – Facebook: https://www.facebook.com/revistarbhe/

Giullia de Luca Maia – Lattes: http://lattes.cnpq.br/3494121670061361

Paula Leonardi – Lattes: http://lattes.cnpq.br/6930629041565848

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

LEONARDI, P. Transformações urbanas e escolarização [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2024 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2024/01/15/transformacoes-urbanas-e-escolarizacao/

 

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