Ana Maria Veiga, Professora de Teoria da História na Universidade Federal da Paraíba, Editora dos periódicos Saeculum e Revista Estudos Feministas, João Pessoa, PB, Brasil
Os periódicos feministas, desde que existem, tiveram que debater os temas centrais relacionados às reivindicações das mulheres. Em se tratando de publicações científicas, como a Revista Estudos Feministas e a Cadernos Pagu, podemos observar que, já nas primeiras edições, começaram a lidar com questões relacionadas à violência contra a “mulher”, depois contra as “mulheres” (de acordo com as mudanças nos sujeitos do/s feminismo/s) e, por fim, com a temática “gênero e violências”.
De modo incontornável, o ativismo contra a violência de gênero, em todos os campos, ainda se faz necessário. Ele passou a agregar outros sujeitos, amparados sob o guarda-chuva teórico e político dos feminismos. Não é à toa que hoje se fala em feminismo negro, feminismo indígena, feminismo lésbico, transfeminismo, anarcofeminismo, ecofeminismo, cyberfeminismo, e assim por diante. Em todas essas modalidades, se há um tema comum, é o da violência de gênero, atingindo também a população LGBTQI+.
A permanência da temática é apresentada como um sintoma social. Tão arraigada como o racismo que estrutura as sociedades — brasileira, latino-americana, africana, europeia, estadunidense —, a violência de gênero, que tanto perdura, denuncia a reiteração de um poder que é bruto, embora às vezes sutil, e que busca “ensinar” às mulheres um lugar de submissão social e cultural. E é por isso que o gênero incomoda tanto, mesmo em termos acadêmicos, quando não se quer reconhecer a relevância do campo para as Ciências Sociais, mas não apenas para elas, já que o debate está colocado na atualidade em todas as áreas do conhecimento científico. Disso não temos dúvida.
Um exemplo extremo dessa permanência é a história da Lei Maria da Penha, no Brasil, que já completa treze anos. A lei é resultado de uma história de violência e perseguição deliberadamente ignorada pelas instituições. Não bastou Maria da Penha Fernandes denunciar, buscar proteção, avisar sobre ações e ameaças de morte e as tentativas de homicídio (no mínimo duas) por parte do marido, que a deixou paraplégica com um tiro de arma de fogo em 1983. Maria da Penha teve que recorrer à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA para que o caso fosse considerado e que se começasse a discutir seriamente o problema da violência doméstica e do feminicídio no Brasil.
Um dossiê intitulado “Balanço sobre a Lei Maria da Penha” (SARDENBERG; GROSSI, 2015) foi organizado pela Revista Estudos Feministas no número 2 de 2015 (v. 23) — momento em que a Lei completava dez anos. No mesmo ano, o livro Gênero e Violências — diálogos interdisciplinares foi organizado por pesquisadoras da UFSC, que são também editoras da REF, e publicado em 2016, como resultado do Colóquio Interdisciplinar Gênero e Violências. Mais do que pensar em comemorações, interessava às organizadoras das duas publicações mapear as permanências da violência de gênero, comprovadas por pesquisas científicas. Para além das mulheres, o termo homofobia também passou a estampar reportagens e raras capas de jornais, entre mortes e ataques frequentes (GOMES, 2014).
Para termos uma ideia dos debates atuais, proponho buscar a temática gênero e violência no volume 27 da REF de 2019, sendo que do número 1 destaco o artigo “Imagens de violência de gênero em telenovelas brasileiras”, de Lorena Rúbia Pereira Caminhas, que argumenta sobre a banalização de imagens e atos de violência em um dos produtos audiovisuais mais assistidos no país. Do número 2, menciono o texto “A injunção social da maternagem e a violência”, de Maria Cristina Baluta e Dircéia Moreira, no qual as autoras trazem uma questão que vai contra o mito da maternidade, no estudo sobre mães agressoras de crianças, principalmente meninas. Outros temas aparecem, como violência obstétrica, assédio nas ruas e violência na internet. Ou seja, o tema violência de gênero pode ser tomado como um amplo leque de possibilidades, enumeradas aqui por meio de estudos e publicações, mas necessariamente pensado como resultado de uma sociedade ainda excessivamente violenta e agressiva com relação às mulheres e à população LGBTQI+.
Deste modo, podemos refletir sobre um dualismo temático nas páginas do periódico, dividida entre a positivação de sujeitos diversos em estudos que valorizam o protagonismo social, como contraponto a temas que as editoras da REF gostariam de não mais precisar abordar no conteúdo da publicação, como o racismo, a LGBTfobia e a violência contra as mulheres.
Referências
GOMES, M. P. A força de uma palavra: homofobia nas páginas da Folha de São Paulo (1986-2011). 2014. 240 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014.
MACHADO, I. V. Lei Maria da Penha: conquistas e desafios. In: VEIGA, A. M.; LISBOA, T. K.; WOLFF, C. S. (Org.) Gênero e violências: diálogos interdisciplinares. Florianópolis: Edições do Bosque, 2016. Cap. 1, p. 8-26.
Para ler os artigos, acesse
BALUTA, M. C. and MOREIRA, D. A injunção social da maternagem e a violência. Rev. Estud. Fem., v. 27, n. 2, e48990, 2019. ISSN: 0104-026X [acessado 1 outubro 2019]. DOI: 10.1590/1806-9584-2019v27n248990. Available from: http://ref.scielo.org/rdyvcg
CAMINHAS, L. R. P. Imagens de violência de gênero em telenovelas brasileiras. Rev. Estud. Fem., v. 27, n. 1, e52253, 2019. ISSN: 0104-026X [acessado 1 outubro 2019]. DOI: 10.1590/1806-9584-2019v27n152253. Available from: http://ref.scielo.org/4wnzdq
SARDENBERG, C. M. B. and GROSSI, M. P. Balanço sobre a Lei Maria da Penha. Rev. Estud. Fem., v. 23, n. 2, p. 497-500, 2015. ISSN: 0104-026X [acessado 1 de outubro 2019]. DOI: 10.1590/0104-026X2015v23n2p497. Available from: http://ref.scielo.org/t99n2f
Link externo
Revista Estudos Feministas – REF: www.scielo.br/ref
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