Ficção e realidade: quais os limites da autoria em um trabalho de arte?

Bruna Mayer, Graduanda de Artes Visuais (ECA-USP), São Paulo, SP, Brasil

Durante o lançamento do número 29 da revista ARS, na Pinacoteca de São Paulo, o escritor Ricardo Lísias apresentou intersecções entre o campo da literatura e das artes visuais. Autor da resenha “Medicados e satisfeitos”, publicada na ARS 29, Lísias refletiu sobre a utilização de alguns conceitos já sedimentados nas artes visuais para a construção de um trabalho literário. Citando os escritores Enrique Vila-Matas (2016) e Bem Lerner (2015), Lísias teceu um breve panorama sobre o tema.

Em Medicados e satisfeitos, o autor nos pergunta “como reagir no mundo contemporâneo?” (LÍSIAS, 2017, p. 241), ao comentar Estação Atocha, de Bem Lerner. Pedro Monteiro, autor da resenha A vista particular, do livro de Lísias de mesmo título, tangencia essa questão ao afirmar que a arte como forma de intervenção, apesar de um recurso antigo, segue atual e relevante e que

O que está em questão, no caso de Lísias, […] é a possibilidade de se inventar um mundo completamente diferente do nosso, embora, ao mesmo tempo, incrivelmente próximo e passível de reconhecimento […], enquanto somos levados, sub-repticiamente, a um universo de absurdos que nos faz pensar que o que vemos através das lentes da ficção não é real. Ou será real? (MONTEIRO, 2017, p. 232).

No excerto selecionado do debate, Lísias comenta o conceito de anonimato na literatura e as complicações jurídicas resultantes do uso desse procedimento em seu livro mais recente, Diário da Cadeira, cuja autoria é atribuída a Eduardo Cunha (2017). Lísias fala que sua vontade era, após o lançamento do livro, comentar reportagens e notícias a respeito dele, além de produzir um segundo volume. Essas complicações jurídicas teriam impossibilitado a continuidade da obra e, segundo o autor, constituído censura.

O problema central para Lísias é a compreensão de que o anonimato é parte fundamental para a existência do livro e, por conta disso, todas as menções a ele enquanto autor do texto minam a complexa e intrincada relação entre realidade e ficção estabelecida em Diário da Cadeia. O autor também levanta questões a respeito do impedimento de seu anonimato enquanto um massacre do sistema jurídico brasileiro a um conceito estético. Segundo Monteiro, “ninguém escapa do mundo ficcional moderno: nem os personagens, nem o escritor, que se torna, ele mesmo, personagem” (MONTEIRO, 2017, p. 232).

Lísias comenta, em Medicados e satisfeitos, que é a “mentira” é prática comum dos narradores de Não há lógica em Kassel, de Enrique Vila-Matas, e de Estação Atocha, de Bem Lerner: “acho que o engano funciona como uma espécie de ponte não só entre o narrador e as pessoas, mas entre elas e a arte e, de maneira ainda mais ampla, essa construção toda e o mundo” (LÍSIAS, 2017, p. 242).

Se impedirmos o anonimato como recurso literário e considerarmo-lo apenas manipulação, para Monteiro, “não estaremos entendendo que a natureza da arte é justamente esta: manipular, alegre e sutilmente, o que chamamos de verdadeiro” (MONTEIRO, 2017, p. 233). O autor ainda afirma que não é mais papel da literatura ser mural da sociedade burguesa, desvendar o drama do sujeito ou representar o mundo, mas nos jogar mais fundo nele (MONTEIRO, 2017, p. 237).

Já em A Vista Particular, Lísias afirma não pretender articular procedimentos das artes visuais, mas falar do meio artístico e das relações interpessoais entre os seus diversos agentes do circuito artístico. O escritor narra com humor corrosivo a história do personagem artista José de Arariboia em sua saga criativa e institucional, além de comentar novamente questões da atualidade como a autoria e a divulgação de notícias e acontecimentos nas mídias.

Referências

CUNHA, E. (pseudônimo). Diário da Cadeia – com trechos da obra inédita Impeachment. São Paulo: Record, 2017.

LÍSIAS, R. A vista particular. São Paulo: Alfaguara, 2016.

LERNER, B. Estação Atocha. São Paulo: Radio Londres, 2015.

VILA-MATAS, E. Não há lógica em Kassel. São Paulo: CosacNaify, 2016.

Para ler os artigos, acesse

LISIAS, R. Medicados e satisfeitos. ARS (São Paulo) [online]. 2017, vol.15, n.29, pp.239-243. [viewed 23 November 2017]. ISSN 1678-5320. DOI: 10.11606/issn.2178-0447.ars.2017.131502. Available from: http://ref.scielo.org/qw469n

MONTEIRO, P. M. A vista particular, de Ricardo Lísias. ARS (São Paulo)[online]. 2017, vol.15, n.29, pp.230-237. [viewed 23 November 2017]. ISSN 1678-5320. DOI: 10.11606/issn.2178-0447.ars.2017.131494. Available from: http://ref.scielo.org/gf5sck

Link externo

ARS (São Paulo) – ARS: www.scielo.br/ars

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

MAYER, B. Ficção e realidade: quais os limites da autoria em um trabalho de arte? [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2017 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2017/12/01/ficcao-e-realidade-quais-os-limites-da-autoria-em-um-trabalho-de-arte/

 

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