Douglas Sathler, Professor da UFVJM, Diamantina, MG, Brasil.
Guilherme Leiva. Professor do CEFET-MG, Belo Horizonte, Brasil.
A pandemia da COVID-19 trouxe enormes desafios para a ciência mundial. Afinal de contas, mais de 7 bilhões de pessoas aguardavam por respostas rápidas que pudessem mitigar ou mesmo decretar o fim da pandemia. Estava claro que este evento de proporções globais exigia o trabalho e a reflexão não apenas de cientistas dedicados a produção de vacinas, ou de pesquisadores do campo da epidemiologia. Era preciso um esforço interdisciplinar para compreender as múltiplas dimensões da pandemia. Nesse contexto, mudamos imediatamente os rumos das nossas agendas de pesquisa e aceitamos o desafio de refletir como a geografia urbana pode contribuir para o combate da COVID-19.
No texto A cidade importa: urbanização, análise regional e segregação urbana em tempos de pandemia de Covid-19, publicado na Revista Brasileira de Estudos de População (REBEPop), buscamos responder a seguinte pergunta: por que as cidades importam nas discussões sobre o combate à COVID-19? Para responder esta pergunta, precisamos avaliar não apenas a cidade em si, ou seja, seus aspectos intra-urbanos, mas também, questões de natureza regional, a exemplo de redes urbanas e áreas de influência da cidade. Além desse olhar multi-escalar, entendemos ser fundamental, no caso das cidades brasileiras, adicionarmos um aspecto essencial nessa discussão: a desigualdade social e suas repercussões espaciais no espaço urbano.
Os teóricos da cidade, a exemplo de Jane Jacobs, Edward Soja e, mais recentemente, Allen Scott e Michael Storper, destacam que a proximidade e a densidade são aspectos fundamentais que explicam o desenvolvimento e o crescimento das cidades na história. Curioso imaginar que estas mesmas características associadas ao progresso das cidades (aglomeração, proximidade e densidade) acabam por aumentar a vulnerabilidade das populações às pandemias. Na sociedade urbana, pessoas estão mais próximas nas cidades (do ponto de vista espacial, ao menos), e cidades estão mais próximas umas das outras. E não é segredo para ninguém que o “sucesso” da COVID-19 esteve intimamente associado a isso.
Durante grandes pandemias, a exemplo dessa que estamos vivendo, cidades diferentes podem produzir resultados epidemiológicos diferentes? Ao comparar a compacta Nova Iorque com a extensa e automotiva Los Angeles demonstramos que a velocidade e a intensidade de disseminação do vírus foram bem distintas nestas duas cidades. De fato, estamos falando de cidades bem diferentes. Em Nova Iorque, sobretudo em Manhattan, percebemos a força do transporte ativo e coletivo, com a valorização de espaços públicos e da lógica do encontro para os cidadãos. Em Los Angeles, cidade mais congestionada dos EUA, segundo o índice da Tomtom Internacional 2019, onde apenas 12% dos domicílios não apresentavam carros em 2018 (US Census Bureau, 2018), boa parte das áreas públicas foram projetadas para oferecer suporte à circulação de carros e veículos automotores.
Em Nova Iorque, logos nos primeiros meses de pandemia, a COVID-19 implodiu (adensou) e explodiu (expandiu rapidamente para outras cidades). As cenas de corpos sendo empilhados em caminhões frigoríferos no Central Park rodaram o mundo. Já Los Angeles, não se demonstrou tão vulnerável à explosão de casos de COVID-19 num primeiro momento, quando medidas de distanciamento físico e social ainda não haviam sido decretadas. A lógica do desencontro não é a lógica do vírus.
Seria o fim da busca por projetos mais democráticos de cidade? A lógica da cidade espraiada, da distância e dos automóveis teria se mostrado mais eficiente e segura, em tempos de pandemia? Não. As cidades e tudo o que está associado à lógica urbana não apenas aglomeram pessoas. Cidades aglomeram soluções, aglomeram inteligência. Nova Iorque demonstrou uma capacidade surpreendente de promover o rápido achatamento da curva de contágio após adotadas medidas de distanciamento físico e social. A ciência favorecida pela concentração de mentes e de recursos nas cidades apresentou soluções efetivas em tempo recorde. Cidades que até então estiveram de joelhos perante o vírus passaram a exibir certa normalidade.
A partir do exemplo de São Paulo, demonstramos no artigo publicado como aspectos associados às desigualdades sociais criam um caminho muito mais tortuoso no combate à pandemia. Em São Paulo, a desigualdade imprime uma realidade urbana muito mais complexa, diante da presença de espaços e populações muito heterogêneas. A segregação sócio-espacial e o acesso desigual às oportunidades, recursos e serviços públicos sugerem que, apesar de estarmos enfrentando a mesma tempestade, estamos em barcos muito diferentes. Ao analisar questões associadas a qualidade dos espaços públicos, das moradias (alta média de moradores por domicílios, tamanho das residências, densidade dos bairros e localização) e da mobilidade urbana (oferta reduzida dos serviços, lotação dos ônibus e alto tempo médio de deslocamento), percebemos haver diferentes condições e capacidades para pessoas e comunidades no enfrentamento da pandemia.
Nessa discussão, as relações externas que as cidades estabelecem em suas redes urbanas e áreas de influência importam. As hierarquias urbanas que se consolidam nas regiões também importam. A disseminação da covid-19 obedece a lógica das redes, com cidades comandando e intermediando não apenas fluxos de informações, pessoas e de serviços, mas também de vírus. A covid-19 demonstrou não conhecer fronteiras administrativas. O vírus, em Juiz de Fora, polo regional localizado na fronteira de Minas Gerais com o Rio de Janeiro, provavelmente torce para o Vasco, Flamengo ou Botafogo, assim como boa parte dos moradores dessa cidade mineira. Então, políticas públicas centralizadas em governos estaduais devem estar atentas a dinâmica do espalhamento do vírus. O estudo do IBGE intitulado “Regiões de Influência das cidades 2018” tem muito mais a dizer sobre a forma com que a covid-19 se propaga em Minas Gerais do que o mapa do estado plotado em uma das paredes da sala do governador.
No artigo publicado na REBEPop não buscamos respostas definitivas para alguma questão específica envolvendo cidades e a COVID-19. Ao invés disso, oferecemos um cardápio rico de possibilidades investigativas para estudos posteriores. De forma didática, construímos um diagrama para apresentar os principais elementos que associam os aspectos urbanos multiesclares e a disseminação da COVID-19.
Figura 1. Diagrama resumindo os principais elementos que associam os aspectos urbanos multiescalares e a disseminação da COVID-19.
Ao final, apesar do desprestigio da ciência brasileira nas agendas de governo, do subfinanciamento e do sucateamento sistemático das nossas estruturas de pesquisa, o atual modelo institucional que confere autonomia às universidades e liberdade de cátedra aos professores/pesquisadores contribuiu para que muitos estudos sobre a covid-19 se iniciassem imediatamente no Brasil.
Na maioria das vezes, estes estudos contaram com o financiamento apenas das horas trabalhadas de pesquisadores e professores das universidades e institutos federais. No entanto, para que mais estudos prosperem, a exemplo do trabalho que publicamos na REBEPop, e sejam capazes de gerar resultados relevantes para a sociedade em momentos de crise, precisamos ir além de um desenho institucional favorável, muitas vezes ameaçado pelas tentativas de interferência política nas universidades, institutos e centros de pesquisa. A ciência brasileira urge por orçamento e melhores condições de trabalho, para que a criatividade dos nossos cientistas seja cultivada em terreno fértil. Criatividade necessária para o enfrentamento dos desafios do nosso tempo.
Para ler o artigo, acesse
SATHLER, D. and LEIVA, G. A cidade importa: urbanização, análise regional e segregação urbana em tempos de pandemia de Covid-19. Rev. bras. estud. popul. [online]. 2022, vol. 39, e0205 [viewed 22 August 2022]. https://doi.org/10.20947/S0102-3098a0205. Available from: https://www.scielo.br/j/rbepop/a/GLcmncbtpsLXVQYnngWLYqN/
Referências
U.S. Census Bureau. Maryland: U.S. Census Bureau, 2018.
Links externos
Douglas Sathler: https://orcid.org/0000-0002-1547-5522
Guilherme Leiva: https://orcid.org/0000-0002-9228-1908
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Revista Brasileira de Estudos de População – RBEPOP: https://www.scielo.br/j/rbepop/
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