Fome na adolescência: percepções de participantes do Programa Bolsa Família

Milena Serenini, Consultora Técnica do Ministério da Saúde. Esplanada dos Ministérios, Bloco G. Brasília, DF. 

Ana Poblacion. Pesquisadora, Children’s HealthWatch, Boston Medical Center, Boston-MA, Estados Unidos. 

Maysa Helena de Aguiar Toloni, Professora Adjunta no Departamento de Nutrição e Programa de Pós-Graduação de Nutrição e Saúde. Universidade Federal de Lavras (UFLA), Lavras-MG, Brasil.

Logo do periódico Revista Brasileira de Estudos de População.

A alimentação é um direito Constitucional no Brasil. Consequentemente, a segurança alimentar também o é. Para cumprir com esse objetivo, políticas públicas são propostas e implementadas com o intuito de mitigar a insegurança alimentar. Contudo, os anos de 2017 a 2022 foram marcados por uma sucessão de decisões políticas ineficazes que culminou com a alta prevalência de insegurança alimentar. Ao final de 2021, a insegurança alimentar grave atingiu 25,7% entre os domicílios com três ou mais moradores menores de 18 anos (II VIGISAN, 2022). Entre as famílias em situação de vulnerabilidade social, a exemplo daquelas que participam do Programa Bolsa Família, a insegurança alimentar grave chegou a 35% (Galindo et al., 2021).

A insegurança alimentar é geralmente investigada a partir da percepção do responsável pelo domicílio. Porém, adolescentes são capazes de responder de forma autônoma à insegurança alimentar, que impacta negativamente seu crescimento, puberdade, saúde mental e morbilidade a curto e longo prazo. Apesar dos riscos substanciais para a saúde pública associados à insegurança alimentar dos adolescentes, este ainda é um grupo pouco estudado. 

Diante do exposto, o artigo A insegurança alimentar pela voz de adolescentes participantes do Programa Bolsa Família, publicado na Revista Brasileira de Estudos da População (vol. 40, 2023), buscou compreender a percepção de adolescentes, participantes do Programa Bolsa Família (PBF), sobre a situação de insegurança alimentar vivenciada em seus domicílios. A partir de entrevistas em profundidade com 10 adolescentes e suas mães, são apresentadas quatro categorias de análise: “A fome não é só a vontade de comer”; “O fantasma da fome”; “Um por todos e todos por um”; “Estamos seguros?”. 

O trabalho compõe a tese de doutorado de Milena Serenini, orientada pelo Professor Doutor José Augusto Taddei, e com coorientação das professoras Doutoras Maysa Helena de Aguiar Toloni e Ana Poblacion. Compõem a autoria do artigo as pesquisadoras Kelly Carvalho Vieira e Camila Maciente de Souza.

A categoria “A fome não é só a vontade de comer” descreve a percepção dos adolescentes em relação às suas práticas alimentares e à disponibilidade dos alimentos nos domicílios. Esses indivíduos percebem que a quantidade e variedade de alimentos mudam durante o mês, sendo o período de recebimento do recurso do Programa Bolsa Família marcado como o momento em que existe maior disponibilidade de alimentos no domicílio, conforme ilustrado na fala de uma adolescente de 11 anos: “É, fruta assim no final do mês acaba não tendo. E a carne também não. A carne acaba porque é carne. (A3, 11 anos)”

Já a categoria “O fantasma da fome: passado, presente e futuro”, apresenta as experiências e sentimentos dos adolescentes em relação à fome. A vivência da fome na infância parece intensificar a preocupação dos adolescentes com a possibilidade de o alimento faltar no domicílio. Todos os adolescentes entrevistados apresentaram algum grau de preocupação com a possibilidade de o alimento faltar em seus domicílios, mesmo que não tenham vivenciado a experiência de fome ao longo da vida, como pode ser percebido pela frase de uma jovem de 13 anos: “[…] quando os dois mais velhos eram menores ela (a mãe) precisava deixar (os filhos) com a minha tia, porque geralmente não tinha nada pra comer, e ela precisava trabalhar, tanto que meu irmão maior mamou com a minha prima.” (A5, 13 anos).

Quatro mulheres estão diante de uma van com o logotipo do "Bolsa Família". Uma delas está de pé, segurando a câmera, duas estão sentadas na porta lateral da van, e a quarta mulher está em pé ao lado delas, apoiada na van. Todas estão sorrindo.

Imagem: arquivo pessoal dos autores.

A categoria “Um por todos e todos por um: estratégias para alívio da insegurança alimentar” descreve as estratégias que os adolescentes desenvolvem para o alívio da insegurança alimentar, com intenção de protegerem a si mesmos e seus familiares. Reduzir a quantidade de alimentos ingeridos, solicitar que os pais proporcionem a comida no prato, comer repetidas vezes durante as refeições na escola, negar a fome que sentem, frequentar a casa de vizinhos e familiares em busca de refeições, pedir dinheiro para a rede de apoio familiar e realizar trabalhos informais são estratégias desenvolvidas pelos adolescentes.

Essas situações são ilustradas pelos seguintes relatos: “Ah, foi meio constrangedor comer muito às vezes na escola. Isso é constrangedor, ficar repetindo, comer 1, 2, 3, 4 vezes na escola. Isso aconteceu foi ano passado agora. Aí eu pensei, eu vou comer bastante pra deixar o que tem lá [na casa] pra eles, pra não faltar. Porque aqui são 6 com uma criança.” (A8, 15 anos); e “Fiquei [com fome]. Mas a preocupação não é comigo não, é com eles [irmãos]. O importante é eles. […] Eu e meus irmãos mais velho[s], sabe? Aí fica um jogando pro outro: ‘não, pode comer. Pode comer’. ‘Não, pode comer’. Fica um jogando pro outro pra poder comer. Muitas vezes acontece isso.” (A 10, 18 anos).

Cabe destacar que os adolescentes reconhecem o Programa Bolsa Família como uma fonte de segurança alimentar – “Minhas amigas tudo que eu sei que recebe [PBF] tem o que comer” (A4, 13anos) – ao mesmo que consideram o recurso insuficiente para o alívio de suas preocupações em relação à possibilidade do alimento faltar em seus domicílios. 

Ainda, os adolescentes sugerem que o PBF seja associado a outras políticas públicas para garantia da segurança alimentar: “Ah, eu acho que além do Bolsa Família deveria ter um cartão, assim, só pra fazer compra. Porque a gente sabe que o Bolsa Família, o que que o povo faz, né: eles podem pagar conta igual nóis. Pode pagar conta e faltar comida… ou pode comprar comida e faltar o dinheiro para pagar as contas. Então eu acho que podia ter tipo meio que um abono, né, tipo só pro alimento.” (A6, 18 anos).

A última categoria de análise, “Estamos seguros?”, apresenta a percepção das mães em relação a vivências dos adolescentes frente à situação de insegurança alimentar. Nenhuma das mães entrevistadas considera que seus filhos se preocupam com a possibilidade de o alimento faltar dentro de casa, e, ainda que tenham consciência de certas atitudes dos seus filhos para mitigar a insegurança alimentar, elas reforçam que atuam para evitar que esse tipo de preocupação chegue aos filhos. Nesse cenário, discursos contraditórios foram observados dentro do mesmo domicílio, como ilustrado pelas falas de mãe e filho a seguir: 

“Não, porque os meus filhos não merendam na escola. Na minha casa, eu não sei dizer referente a isso [se a greve escolar afeta a alimentação dos filhos], mas na minha casa, os meus não merendam na escola. Não altera nada.” (R4 – mãe).

“Como, como, sim [alimentação na escola]. Como todo dia. Tem vez que é sopa, arroz e feijão, carne moída. […] Ah, aí eu como menos aqui né [em casa nos tempos de greve], pra tentar ajudar mesmo assim.” (A8, 15 anos – filho).

As entrevistas foram realizadas antes da pandemia de Covid-19, e é fundamental destacar que a situação da fome no país se agravou entre 2020 e 2022, atingindo principalmente os domicílios com menores de 18 anos, e chefiados por mulheres negras (Vigissan, 2021/2022). O artigo, por fim, apresenta possibilidades para incorporação da avaliação da insegurança alimentar a partir da percepção dos adolescentes, no âmbito das políticas públicas brasileiras. 

Semana Especial Revista Brasileira de Estudos de População 2023

Referências

ARRUDA, P. and BITTENCOURT, Z. Desafios e possibilidades do Programa Bolsa Família: houve mudanças nas condições de vida de seus beneficiários? Serviço Social em Revista [online]. 2020, vol. 22, no. 2, pp. 385-407 [viewed 30 November 2023]. https://doi.org/10.5433/1679-4842.2020v22n2p385. Available from: https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/ssrevista/article/view/37360  

COELHO, S.E.A.C. et al. Insegurança alimentar entre adolescentes brasileiros: um estudo de validação da Escala Curta de Insegurança Alimentar. Revista de Nutrição [online]. 2015, vol. 28, no. 4, pp. 385-395 [viewed 30 November 2023]. https://doi.org/10.1590/1415-52732015000400005. Available from: https://www.scielo.br/j/rn/a/nwd5mCGmcd8jhFvdKmRZKgy/  

DUSH, J.L. Adolescent food insecurity: a review of contextual and behavioral factors. Public Health Nurs [online]. 2020, vol. 37, pp. 327-338 [viewed 30 November 2023]. https://doi.org/10.1111/phn.12708. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/31970826/  

FATMANINGRUM, D., ROSHITA, A. and FEBRUHARTANTY, J. Coping strategies for food insecurity among adolescent girls during the lean season in East Nusa Tenggara, Indonesia: a qualitative study. The British Journal of Nutrition [online]. 2016, vol. 116, no. 1, p. 42-48 [viewed 30 November 2023]. https://doi.org/10.1017/s0007114515004092. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26537517/  

REDE PENSSAN. II VIGISAN – Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil [online]. Olhe para a Fome, 2022 [viewed 30 November 2023]. Available from: https://olheparaafome.com.br/wp-content/uploads/2022/06/Relatorio-II-VIGISAN-2022.pdf    

Para ler o artigo, acesse

SERENINI, M., VIEIRA, et al. A insegurança alimentar pela voz de adolescentes participantes do Programa Bolsa Família. Rev. bras. estud. popul. [online]. 2023, vol. 40, e0242 [viewed 30 November 2023]. Available from: https://doi.org/10.20947/S0102-3098a0242. Available from: https://www.scielo.br/j/rbepop/a/sPLVtjd7VfLKMLvDNv7Pzrz/ 

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Como citar este post [ISO 690/2010]:

SERENINI, M., POBLACION, A. and TOLONI, M.H.A. Fome na adolescência: percepções de participantes do Programa Bolsa Família [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2023 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2023/11/30/fome-na-adolescencia-percepcoes-de-participantes-do-programa-bolsa-familia/

 

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