Quais os desafios da internacionalização para os periódicos na área de Humanas?

Ana Maria Veiga, Professora de Teoria da História na Universidade Federal da Paraíba, Editora dos periódicos Saeculum e Revista Estudos Feministas, João Pessoa, PB, Brasil

De alguns anos para cá, a Revista Estudos Feministas (REF) tem realizado um esforço interno coletivo de adaptação às demandas dos indexadores, como o SciELO, que possibilitam a qualificação da REF como um periódico que é referência científica no campo das Ciências Humanas. Uma dessas demandas atendidas é o processo de internacionalização, que vem sendo discutido nos últimos anos, inclusive nos encontros do próprio SciELO. De acordo com Abel Packer (2014), há um crescimento no impacto internacional da pesquisa brasileira, promovido pelas exigências dos indexadores.

Não é de maneira irrefletida que esse esforço acontece no interior da REF, já que as editoras mais antigas evocam a memória de uma perspectiva transnacional, que sempre esteve presente nos interesses e nas práticas do grupo editorial. Desde as páginas em azul, que traziam aos leitores e leitoras traduções, lá nos primeiros anos 1990, até os contatos e redes alimentados com frequência por meio do Seminário Internacional Fazendo Gênero — que alcançará em 2020 sua 12.a edição —, organizado pela mesma equipe editorial, de forma ampliada, cujas edições sempre resultaram em novas publicações e na visibilidade de temáticas emergentes.

A REF, ao longo do tempo, foi se consolidando como espaço privilegiado dos debates feministas e de gênero na América Latina, na África de língua portuguesa, nos países de idioma português e espanhol, de acordo com Susana Bornéo Funck, uma das responsáveis pela editoria internacional. Além disso, foi conquistando aos poucos leitoras/es e autoras/es também de língua inglesa. E é isso que entendemos como internacionalização.

O desafio do presente para os periódicos científicos da área de Humanas é fazer com que boa parte dos textos seja publicada em inglês, como se apenas isso garantisse a leitura de autoras e autores brasileiras/os e latino-americanas/os nos países de língua inglesa. Para Susana Funck, o que falta é que se crie no exterior um interesse pelo que publicam autores e autoras do Brasil e de outros países da América Latina.

Mara Coelho de Souza Lago, atualmente uma das coordenadoras editoriais da REF, também contribui com uma visão crítica sobre o tema. Em artigo publicado em inglês na Special Section (v. 26, n. 3), Mara Lago (2018) argumenta: “Internacionalização que se dá fundada inicialmente na adaptação de nossas diferentes falas/línguas nacionais — à incorporação hegemônica do inglês como segunda língua. Se isso tem muitos aspectos positivos, em termos de nossas formações em diferentes níveis, das trocas culturais possibilitadas, do domínio de novos idiomas e, com eles, novos conhecimentos e experiências multiculturais, não podemos esquecer de algumas questões, como a imposição de valores/costumes/culturas/tradições que apequenam nossas origens e nossos continentes nesse mundo globalizado (tradições que são também parte de nós, constituídos que fomos como povos nacionais em processos de colonizações europeias imperialistas)” (p. 3, tradução da própria autora).

Lago informa que houve um grande investimento na aproximação com pesquisadoras do Cone Sul na última década e meia por meio da revista, principalmente devido aos contatos travados no Fazendo Gênero e que, atualmente, no mínimo 20% dos textos da REF têm sido escritos e publicados em língua espanhola. Assim, ao mesmo tempo em que isso fortalece essa coalizão regional importante para os feminismos acadêmicos, isso não é considerado nos termos dos indexadores dos periódicos científicos. Enquanto os temas e abordagens decoloniais e de gênero (cf. LUGONES, 2014) demarcam debates geopoliticamente localizados e necessários, as demandas dos indexadores impõem outro ritmo e outro olhar.

Sigo ainda com a provocação de Mara Lago: “Em contraposição aos rumos da internacionalização ditada pelos principais indexadores das publicações brasileiras e pelas instituições que definem as políticas educacionais do país, têm sido cada vez mais presentes na REF os temas da descolonização, dos feminismos decoloniais, que enfatizam a valorização das produções culturais dos colonizados, numa guinada das viagens de teorias, artes, tradições — que se faziam tradicionalmente do norte para o sul — e que agora valorizam novas direções, do sul ao sul” (LAGO, 2018, p. 5, tradução nossa). Ainda assim, a seção de entrevistas publicadas na Revista Estudos Feministas privilegia amplamente intelectuais situadas no Norte global.

Talvez o maior desafio colocado pelas exigências mais recentes, por parte dos indexadores, seja justamente o de conciliar essa visão editorial da REF, que é ao mesmo tempo politizada, localizada, inclusiva, mas também voltada para a sobrevivência dentro do escopo editorial científico, cujos ônus gerados se referem ao cumprimento de uma agenda ou de uma pauta internacionalizada, que trata os mais diversos ramos científicos de modo similar, aproximando os seres humanos (e as ciências que a eles se referem) às maquinas, aos chips ou aos cálculos. Assim, as possíveis apostas teóricas dos estudos feministas e de gênero reatualizam o ciborgue proposto por Donna Haraway (2009), tornando autoras e autores partes dessa engrenagem, que desmonta e fragmenta, ao mesmo tempo em que impulsiona e seduz.

Referências

HARAWAY, D. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: HARAWAY, Donna et al. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano.  Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p. 33-118.

LAGO, M. C. de S. Vicissitudes of Internationalization: Academic articles in Brazilian journals. Rev. Estud. Fem., v. 26, n. 3, e58654, 2018. ISSN: 0104-026X [viewed 5 October 2019].  DOI: 10.1590/1806-9584-2018v26n358654. Avalaible from: http://ref.scielo.org/z5mqm6

LUGONES, M. Rumo a um feminismo descolonial. Rev. Estud. Fem., v. 22, n. 3, p. 935-952, 2014. ISSN: 0104-026X [viewed 5 October 2019]. DOI: 10.1590/S0104-026X2014000300013. Available from: http://ref.scielo.org/qn8nfb

PACKER, A. A internacionalização dos periódicos foi tema central da IV Reunião Anual do SciELO [online]. SciELO em Perspectiva, 2014 [viewed 5 October 2019]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2014/12/16/a-internacionalizacao-dos-periodicos-foi-tema-central-da-iv-reuniao-anual-do-scielo/

Link externo

Revista Estudos Feministas – REF: www.scielo.br/ref

Sobre Tânia Regina Oliveira

Tânia Regina Oliveira Ramos

Tânia Regina Oliveira Ramos

Tânia Regina Oliveira Ramos é professora titular em Letras e Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), atuando nas áreas de Literatura Brasileira e Estudos Literários. Coordena o núcleo Literatura e Memória. É integrante da Coordenação Geral da REF e do Conselho Editorial das revistas UniLetras, Mafuá Ciências e Letras, Literatura Hoje, Signótica e Anuário de Literatura. E-mail: taniareginaoliveiraramos@gmail.com

 

Sobre Cristina Scheibe Wolff

Cristina Scheibe Wolff

Cristina Scheibe Wolff

Cristina Scheibe Wolff é professora titular do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Realizou pós-doutorado na Université Rennes 2 (2010-2011), no Latin Amerian Studies Center da University of Maryland, EUA (2010-2011), ocupou a Cátedra Fullbright de Estudos Brasileiros na University of Massachussets, Amherst (2017) e foi pesquisadora convidada no Laboratoire Arenes, em Rennes (2018). É uma das coordenadoras editoriais da REF. E-mail: cristiwolff@gmail.com

 

Sobre Sônia Weidner Maluf

Sônia Weidner Maluf

Sônia Weidner Maluf

Sônia Weidner Maluf é professora titular aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), docente do PPG em Antropologia Social da mesma universidade, professora visitante da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), pesquisadora associada do Institut de Recherches sur les Enjeux Sociaux (IRIS/EHESS), em Paris. Coordena o Núcleo de Antropologia do Contemporâneo e é Coordenadora Executiva do Instituto Brasil Plural/INCT/CNPq. E-mail: soniawmaluf@gmail.com

 

Sobre Susana Bornéo Funck

Susana Bornéo Funck

Susana Bornéo Funck

Susana Bornéo Funck é integrante do Instituto de Estudos de Gênero da UFSC e editora da seção internacional da REF. É professora aposentada de Literaturas de Língua Inglesa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tendo atuado no PPG em Inglês da UFSC e no PPG em Letras da Universidade Católica de Pelotas. Realizou graduação, mestrado e doutorado em universidades dos EUA. E-mail: sbfunck@gmail.com

 

Sobre Simone Pereira Schmidt

Simone Pereira Schmidt

Simone Pereira Schmidt

Simone Pereira Schmidt é professora titular aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tem pós-doutorado em Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Nova de Lisboa e em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal Fluminense. Integra o Instituto de Estudos de Gênero da UFSC, além de outros grupos de pesquisa no Brasil e em Portugal. É editora da REF. E-mail: simonepschmidt@gmail.com

 

Sobre Mara Coelho de Souza Lago

Mara Coelho de Souza Lago

Mara Coelho de Souza Lago

Mara Coelho de Souza Lago é professora Emérita da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professora titular aposentada do Departamento de Psicologia da mesma instituição. Atua como voluntária no PPG em Psicologia e no PPG Interdisciplinar em Ciências Humanas da mesma universidade, onde é membro do Instituto de Estudos de Gênero. É uma das coordenadoras editoriais da REF. E-mail: maralago7@gmail.com

 

Sobre James Naylor Green

James Naylor Green

James Naylor Green

James Naylor Green é professor of Latin American History na Brown University e professor visitante na Hebrew University de Jerusalém, Israel. Fez Ciência Política no Earlham College, Indiana (1972) e doutorado na University of California, Los Angeles (1996). Pesquisa os temas ditadura militar, América Latina, homossexualidades, direitos humanos, com ênfase em História do Brasil. É editor de artigos da REF. E-mail: james_green@brown.edu

Sobre Ana Maria Veiga

Ana Maria Veiga

Ana Maria Veiga

Ana Maria Veiga é professora do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba, com pós-doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina. É editora dos periódicos Saeculum e Estudos Feministas e líder do grupo ProjetAH: História das mulheres, Gênero, Imagens, Sertões. É roteirista e editora dos vídeos postados na Semana Especial da REF. E-mail: anaveiga.ufpb@gmail.com

 

Sobre Fernanda Backendorf

Fernanda Backendorf

Fernanda Backendorf

Fernanda Backendorf é aluna do curso de Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina. É cinegrafista e editora dos vídeos da Semana Especial da REF. E-mail: fernandabackendorf@gmail.com

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

VEIGA, A. M. Quais os desafios da internacionalização para os periódicos na área de Humanas? [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2019 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2019/10/30/quais-os-desafios-da-internacionalizacao-para-os-periodicos-na-area-de-humanas/

 

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