O pioneirismo e conservadorismo de Gilberto Freyre nos estudos sociais das infâncias

Moysés Kuhlmann Jr, professor visitante no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Brasília e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq, Brasília, DF, Brasil

Logo do periódico: Revista Brasileira de História da Educação

No artigo Meninice, história e sociedade no jovem Gilberto Freyre (1915-1930), publicado na Revista Brasileira de História da Educação, vol. 23 (2023), Moysés Kuhlmann Jr. analisa como aquele intelectual pensou a investigação sobre a infância, desde o tempo de seus estudos de Mestrado na Universidade de Colúmbia (EUA), de onde seguiu para alguns países da Europa, até seu retorno ao Recife, em 1923, onde permaneceu até 1930. A categoria da meninice, utilizada por Gilberto Freyre, é uma importante contribuição a destacar, pois dá relevo à experiência das crianças, o que difere da categoria infância, relacionada às representações sobre esse período da vida.

O primeiro foco dos seus interesses foi o brinquedo. A lembrança de seus brinquedos de infância, abandonados aos 15 anos, somada ao ambiente da chamada Escola de Colúmbia – que articulava história, antropologia, psicologia e cultura – teria contribuído para que Freyre pensasse em uma sociologia do brinquedo como um aspecto da sociologia da criança. Suas reflexões procuram dar sentido social ao estudo, referindo-se tanto aos brinquedos industrializados – presenteados às crianças de famílias com recursos – quanto aos brinquedos populares para as crianças pobres. O autor identifica a presença dos brinquedos ao longo da história da humanidade e a sua presença em diferentes culturas, além de criticar os adultos que os classificavam como objetos banais. 

É notável que àquele tempo se manifestasse o interesse no estudo social da infância e do brinquedo, assim como o destaque dado às crianças dos setores populares. Mais ainda, os relatos dão conta da intenção de escrever uma história da meninice, envolvendo crianças do interior, da cidade, dos engenhos e dos vários tipos regionais, diferentemente da história tradicional, que era escrita “para a glorificação dos adultos e dentre os adultos, só os homens; dentre os homens, só os importantes, como políticos e militares”. 

Um homem de barba está sentado, acompanhado por duas meninas. A mais nova está ao seu lado, enquanto a mais velha fica ao lado da mais nova, ambas em pé. Os três estão vestidos com trajes de época que remetem ao estilo da época retratada na imagem.

Figura 1 – Augusto de Souza Leão e filhas, fotografia de Alberto & Henschel & Cia. Fonte: Acervo Fundação Joaquim Nabuco – MEC. Coleção Francisco Rodrigues.

Entretanto, essa argumentação está distante de uma proposição para se produzir uma história dos “de baixo”, pois a valorização desses sujeitos se presta a trazer à tona o conservadorismo do autor: “não há compreensão possível do Homem, deixando-se de procurar compreender a Mulher e o Menino. Como não é possível compreender-se o Senhor, sem se compreender o Escravo” (Freyre, 2006, p.103).

Nota-se uma visão naturalizada da estrutura social, de uma ordem controlada pelos superiores, que não poderia ser transformada por teorias e discursos, em que mulheres, escravos e crianças aparecem como subordinados aos homens senhores. Os brinquedos seriam para o uso exclusivo de grupos específicos: meninos, meninas, pobres, ricos. Para ele, as bonecas seriam uma iniciação nos deveres domésticos e o feminismo não seria uma ameaça enquanto as meninas brincassem com bonecas. 

Nesse contexto, as complexas relações de força e os processos sociais e educacionais em que se produzem as desigualdades são simplificados nas interpretações, que projetam no material – o brinquedo – a reafirmação das diferenças ou a determinação de comportamentos.

Ao comentar sobre a vida social e a escravidão no Brasil, Gilberto Freyre menciona as severas punições como algo normal e sugere um convívio harmônico entre senhores e escravos. Os meninos de engenho teriam vivido uma meninice mais solta do que os da cidade, brincando “com os moleques, seus camaradas e leva-pancadas”. As representações do passado escravista misturam-se com a projeção das suas reminiscências de menino das classes senhoriais, ao confessar ter tratado o moleque Severino como o seu “leva-pancadas”.

Três crianças: uma menina está no centro, sentada e segurando um brinquedo, enquanto dois meninos estão em pé, um em cada lado dela.

Figura 2 – Eduardo Paiva com crianças não identificadas, fotografia de Hermina Costa & Cia. Fonte: Acervo Fundação Joaquim Nabuco – MEC. Coleção Francisco Rodrigues.

Em relação às crianças das elites, predomina a sua representação como adultos precoces e tristes. A interpretação da criança como pequeno adulto não seria produto de uma análise consistente das evidências, mas a projeção de uma representação de infância já existente, que levaria a uma apropriação seletiva das fontes, utilizadas sem problematização. A comprovação da sua tese estaria em fotografias do passado, que trariam imagens de meninas e meninos tristonhos e amadurecidos antes do tempo. 

Isso, no entanto, desconsidera os limites técnicos da produção fotográfica no século XIX. Naquela época, as condições incluíam até mesmo a utilização de suportes físicos para as pessoas se apoiarem durante o longo tempo de exposição, que exigia a imobilidade dos fotografados. As questões sociais e culturais relacionadas às fotografias de família também remetem à solenidade do momento, o que não permite generalizar que vestes, poses e semblantes sérios representassem a vida daquelas crianças.

É plausível supor que a formação das elites exigisse das crianças um esforço que resultaria em sobriedade e antecipação de responsabilidades no seu aprender para fazer parte dos “de cima”. Assim como para os “de baixo” a situação de subordinação antecipava o ingresso no mundo do trabalho. Mas, em um e outro caso, aparecem elementos da vida infantil, em indícios que dão conta dos brinquedos e brincadeiras de que essas crianças participavam, reconhecidos até mesmo pelo autor em outros trechos de seus escritos.

Referências

FREYDE, G. Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade 1915-1930. São Paulo: Global, 2006.

Para ler o artigo, acesse

KUHLMANN JÚNIOR, M. Meninice, história e sociedade no jovem Gilberto Freyre (1915-1930). Revista Brasileira De História Da Educação [online]. 2023, vol. 23, e265 [viewed 17 August 2023]. DOI: https://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e265. Available from: https://www.scielo.br/j/rbhe/a/tHf5r6M6Z5vqDdDdWFqjXxf/ 

Links externos 

Revista Brasileira de História da Educação – RBHE: https://www.scielo.br/j/rbhe/

Revista Brasileira de História da Educação – site: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe/index

Revista Brasileira de História da Educação – Facebook

Moysés Kuhlmann Júnior: http://lattes.cnpq.br/5395628476390038

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

KUHLMANN JÚNIOR., M. O pioneirismo e conservadorismo de Gilberto Freyre nos estudos sociais das infâncias [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2023 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2023/08/17/o-pioneirismo-e-conservadorismo-de-gilberto-freyre/

 

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Post Navigation