Um Boletim mais que centenário participa da Semana Especial do Blog SciELO em Perspectiva | Humanas

Jimena Felipe Beltrão, Jornalista, Ph.D. em Ciências Sociais (University of Leicester, Reino Unido), editora científica do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, PA, Brasil

Silvia de Souza Leão, Jornalista, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia (Unama), Belém, PA, Brasil

Ao longo dessa semana (26 a 30 de nov. 2018), trataremos de temas da ciência amazônica, feita nela e sobre ela. Desde a história da revista, sua identidade e sua transformação em periódico de excelência editorial no campo científico até a discussão sobre coleções etnográficas como testemunho de populações humanas da Amazônia e o papel social dos museus, esses serão alguns dos aspectos selecionados para esse momento de especial atenção à extensa trajetória do Boletim.

Entre as discussões propostas em artigos publicados ao longo de 2018, estão a transformação da paisagem natural diante da ocupação humana e os significados dos territórios que não apenas físicos, mas principalmente culturais. Em “Paisagens e temporalidades em Serra Leste de Carajás”, de autoria de Tallyta Suenny Araújo da Silva, as evidências se apresentam por meio da análise da autora sobre a Serra dos Carajás, no Pará.

Ainda no campo da arqueologia, a identidade de populações indígenas expressa na cultura material e a importância da guarda de objetos do gênero por museus sempre estiveram presentes nas edições do BMPEG. Ciências Humanas. Esse é o caso dos vasos de gargalo da Cultura Konduri e Tapajó estudados por Marcony Alves em “Para além de Santarém: os vasos de gargalo na bacia do rio Trombetas”. Adiante de seu valor estético, traços e semelhanças entre objetos de uma e outra cultura revelam informações sobre os povos ancestrais dando pistas de seu modus vivendi e da forma como imprimiam significado ao seu cotidiano.

Os recursos naturais e sua utilização por grupos humanos na região amazônica tem sido uma constante na produção científica publicada no BMPEG. Ciências Humanas. Em estudo publicado em 2018, Carvalho, Souza e Cunha discutem  em “‘Passaporte para a floresta’: a regulação do extrativismo de balata na Floresta Estadual do Paru, estado do Pará, Brasil”, aspectos da exploração do látex mais especialmente os que afetam os extratores dessa matéria prima que se viram na contingência de, por razões da avançada legislação ambiental em vigência no país, obter autorizações para acessar os recursos. Entre condições de trabalho distintas às que estavam habituados e práticas de tempos idos, os relatos dos atores dessa atividade produtiva informam sobre como tem se conduzido dentro do ainda novo quadro normativo que rege o acesso aos recursos.

Do Brasil à Venezuela e à cultura dos Mapoyo e a extração do cumaru. O salto pode parecer longo, mas nem tanto já que a exploração do também conhecido tonka bean ou sarrapiera, espécie aromática e madeireira encontrada na floresta tropical da porção norte da América do Sul, guarda semelhanças. Para Gabriel Torrealba e Franz Scaramelli, autores de “Las estaciones sarrapieras: los Mapoyo y las economías extractivas del Orinoco Medio, Venezuela”, a coleta do cumaru por indígenas no século passado tem um fator de distinção marcante a se considerar já que o sistema de aviamento – provimento de víveres em troca da matéria prima, sob condições no mínimo desfavoráveis aos coletores — ali praticado nem de longe se aproximava, segundo os pesquisadores, às condições escorchantes e de exploração a que estavam submetidos, por exemplo, os seringueiros na Amazônia brasileira.

Por sua condição essencial, a saúde indígena é tema nessa cobertura tomando como base artigo de Scopel, Dias-Scopel e Langdon (2018): “A cosmografia Munduruku em movimento: saúde, território e estratégias de sobrevivência na Amazônia brasileira”. Nele, os autores apresentam argumento e evidências de que, a despeito da atenção de políticas de Estado, a saúde das populações não recebe o cuidado necessário já que valores de sua cultura não são levados em conta. As agressões ao ambiente em que habitam os Munduruku é apenas um dos aspectos analisados.

Os estudos de Linguística estão entre os de maior especialidade dentre os que se publica no periódico do Museu Paraense Emílio Goeldi. De uma tradição de salvamento de línguas indígenas ameaçadas de desaparecer, os pesquisadores que se estabeleceram há mais de cinco décadas na mais antiga instituição científica da Amazônia se dedicaram a construir conhecimento sobre a multiplicidade de línguas faladas entre os indígenas, com especial ênfase para os povos que habitam o hoje estado de Rondônia, e reuniram um acervo de registros em áudio e vídeo sem igual no mundo. Artigos (ALVES, F., 2018; CARVALHO, 2018; FREITAS; FACUNDES, 2018) e coletâneas de artigos na forma de dossiês temáticos ganham espaço a cada número do BMEG. Ciências Humanas cuja política de acesso aberto garante a visibilidade de um relevante e essencial parte das investigações na área.

Coleções e papel social dos museus — As coleções sob a guarda de museus são documentos da memória de povos, tradições e culturas múltiplas. Uma responsabilidade das instituições envolve o trabalho de curadores e estudiosos de um patrimônio testemunho da história da humanidade. As coleções em museus no mundo inteiro são também fonte de pesquisa e, por conseguinte, de formação de novos profissionais, pesquisadores em áreas como as que atua o Museu Paraense Emílio Goeldi e tantos outros. Para discutir essas questões e também o papel social que desempenham os museus, apresenta-se durante essa semana especial, dois textos acompanhados de vídeos com a participação de antropólogas e de museólogas, que desenvolvem pesquisas e atuam na conservação dos acervos e cultivam relações com os proprietários originais dos objetos.

Com 124 anos, o Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi (BMPEG) é o mais antigo periódico científico em circulação na América Latina. Em seu tempo foi o primeiro do Norte do Brasil. Criado por Emílio Goeldi sob o nome original de Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia, seu primeiro número data de setembro de 1894. Atualmente, é publicado três vezes ao ano, em duas versões, Ciências Humanas cuja missão é publicar trabalhos originais nas áreas de antropologia, linguística, arqueologia e disciplinas correlatas, e também Ciências Naturais.

Foram muitas as transformações vividas pelo periódico em sua trajetória desde a adequação de seu formato, nome, e canais de disponibilização como o SciELO Brasil, uma biblioteca eletrônica que abriga uma coleção selecionada de periódicos científicos brasileiros. Na mais recente mudança no ano de 2016, o BMPEG. Ciências Humanas passou a receber submissões online e a ser publicado apenas em meio eletrônico. No ano de 2017, o periódico passou por avaliação no Qualis-Capes e recebeu A1 para as três áreas-foco — Linguística, Antropologia e Arqueologia de seus conteúdos. Hoje, o BMPEG. Ciências Humanas se encontra no nível mais alto do conceito estabelecido pela Capes — Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal Superior.

Linha do tempo do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi (BMPEG. Ciências Humanas)

Figura 1 – Linha do tempo do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi (BMPEG. Ciências Humanas) Fonte: SILVA, 2018.

Cristiana Barreto, arqueóloga e editora associada do BMPEG. Ciências Humanas, explica a importância histórica do periódico e sua relevância no campo das pesquisas sobre a Arqueologia na contemporaneidade: “O Boletim do Museu Paraense, desde seu início, ocupa um lugar de grande protagonismo na divulgação do conhecimento arqueológico produzido no Brasil, e na Amazônia em particular. Em, 1894, ano em que Emílio Goeldi assume a direção do Museu, o primeiro número do então Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia, abre a sessão científica com um artigo de Ferreira Penna editado postumamente e intitulado Archeologia e Ethnographia no Brazil, onde relata como se deu a fundação do Museu a partir de coleções arqueológicas doadas por vários ilustres colaboradores paraenses, assim como as pesquisas arqueológicas realizadas na Amazônia pelo geólogo canadense Charles Frederick Hartt e outros naturalistas estrangeiros”.

Para Nelson Sanjad, historiador e ex-editor do BMPEG. Ciências Humanas, a história do Museu Goeldi e de outras instituições criadas no século XIX confunde-se com a própria constituição do campo científico no Brasil: “Por meio dessas instituições instalou-se no país uma primeira rede científica, com postos de trabalho especializado, produção e divulgação de conhecimentos científicos, circulação de ideias e objetos etc. A publicação de livros e periódicos foi particularmente importante nesse processo, pois ampliou o raio de ação e influência das instituições e criou um público leitor/consumidor de ciência”.

Já, para Hein van der Voort, línguista e ex-editor do BMPEG. Ciências Humanas, o periódico tem importância histórica para ciência da Amazônia, pois já são quase 125 anos de contribuições fundamentais para a ciência. “A importância histórica do Boletim é muito grande. O Boletim foi palco de muitas contribuições fundamentais à todas as disciplinas da ciência que representa. Além do valor científico do próprio conteúdo, o Boletim também é, devido à sua idade, um espelho da história da ciência na Amazônia. Para poder ter avanço na ciência, na construção do nosso ‘castelo da ciência’, precisamos conhecer os seus fundamentos, que é a sua história, em que participaram os nossos colegas antepassados, como Emília Snethlage, Curt Nimuendajú, Charles Wagley e tantos outros”, destaca.

Um pouco mais de história — Usado como estratégia para inserir a Amazônia no cenário internacional, permutando-o com outros periódicos de importantes instituições científicas da Europa, o Boletim atualmente recebe trabalhos científicos nas áreas de Antropologia, Linguística, Arqueologia e disciplinas correlatas e contribui na disseminação e divulgação do conhecimento científico no mundo.

A partir de 2016, o periódico passou a formato exclusivamente eletrônico, disponível tanto na página do BMPEG. Ciências Humanas, como no ISSUU. “A decisão por um formato eminentemente eletrônico foi tomada em razão da falta de recursos financeiros para custear a impressão. Essa nova fase atende, porém, a outras necessidades como a de redução do uso de papel, da economia de fundos de despacho dos volumes” (SILVA, 2018).

Dôssies — Não é norma do BMPEG. Ciências Humanas publicar números especiais. Dossiês, no entanto, são publicados reunindo artigos científicos e/ou de revisão escritos sobre determinada temática. Foi assim que, em 2015, foi lançada edição sobre as águas que unem as ilhas ao redor da cidade de Belém, legado de Eidorfe Moreira (1912-1989) — dossiê Eidorfe Moreira. Como, também, entre os mais recentes, de 2017, estão os dossiês “Ilustração arqueológica e etnográfica nas Américas” e “Patrimônio indígena e coleções etnográficas”. No ano anterior, o dossiê “Dinâmicas das agriculturas amazônicas” completava edição de 2012 quando se publicou o primeiro conjunto de artigos sobre “Agriculturas amazônicas”.

Temas da Linguística, História, Arqueologia e Museologia estão entre os conteúdos das edições, resultado do pensamento acadêmico brasileiro que trava batalha diária para continuar a produzir. O BMPEG. Ciências Humanas apresenta uma trajetória já consolidada, em seus 124 anos de história como espaço de difusão do conhecimento de alto grau de importância para a ciência brasileira e para a ciência mundial, se constituindo autoridade no campo das publicações científicas com ênfase para temas sobre a Amazônia.

Referências

II RELATÓRIO apresentado pelo director do Museu Paraense ao Sr. Dr. Lauro Sodré, governador do estado do Pará. Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnografia. 1894, t. 1. Disponível em: http://repositorio.museu-goeldi.br/handle/mgoeldi/1080

SILVA, T. C. Rumo à revisão da política editorial do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. 2018. Belém: CNPq/MPEG/MCTI. Relatório final, 2018.

Para ler os artigos, acesse

ALVES, F. C. Sujeito dativo em Canela. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum. [online]. 2018, vol.13, n.2, pp.377-403. ISSN 1981-8122. [viewed 23 November 2018]. DOI: 10.1590/1981.81222018000200007. Available from: http://ref.scielo.org/rsjc8g

ALVES, M. L. Para além de Santarém: os vasos de gargalo na bacia do rio Trombetas. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum. [online]. 2018, vol.13, n.1, pp.11-36. ISSN 1981-8122. [viewed 23 November 2018]. DOI: 10.1590/1981.81222018000100002. Available from: http://ref.scielo.org/7m5956

CARVALHO, F. O. The historical phonology of Paunaka (Arawakan). Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum. [online]. 2018, vol.13, n.2, pp.405-428. ISSN 1981-8122. [viewed 23 November 2018]. DOI: 10.1590/1981.81222018000200008. Available from: http://ref.scielo.org/f6gyp2

CARVALHO, L. G., SOUZA, B. R. G. and CUNHA, A. P. A. ‘Passaporte para a floresta’: a regulação do extrativismo de balata na Floresta Estadual do Paru, estado do Pará, Brasil. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum. [online]. 2018, vol.13, n.2. ISSN 1981-8122. [viewed 23 November 2018]. DOI: 10.1590/1981.81222018000200002. Available from: http://ref.scielo.org/47rmhf

FREITAS, M. F. P. and FACUNDES, S. S.Considerações sobre a posse nominal em Apurinã (Aruák). Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum. [online]. 2018, vol.13, n.3, pp.645-662. ISSN 1981-8122. [viewed 26 November 2018]. DOI: 10.1590/1981.81222018000300009. Available from: http://ref.scielo.org/tfykqy 

SCOPEL, D., DIAS-SCOPEL, R. and LANGDON, E. J. A cosmografia Munduruku em movimento: saúde, território e estratégias de sobrevivência na Amazônia brasileira. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum. [online]. 2018, vol.13, n.1, pp.89-108. ISSN 1981-8122. [viewed 23 November 2018]. DOI: 10.1590/1981.81222018000100005. Available from: http://ref.scielo.org/wnypsf

SILVA, T. S. A. Paisagens e temporalidades em Serra Leste de Carajás. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum., v. 13, n. 2, p. 331-352, 2018. ISSN: 1981-8122 [viewed 23 November 2018]. DOI: 10.1590/1981.81222018000200005. Available from: http://ref.scielo.org/kb9vw3

TORREALBA, G. and SCARAMELLI, F. G. Las estaciones sarrapieras: los Mapoyo y las economías extractivas del Orinoco Medio, Venezuela. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum. [online]. 2018, vol.13, n.2, pp.293-314. ISSN: 1981-8122 [viewed 23 November 2018]. DOI: 10.1590/1981.81222018000200003. Available from: http://ref.scielo.org/27tnhd

Links externos

Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas – BGOELDI: www.scielo.br/bgoeldi

Línguas indígenas da Amazônia: www.linguistica.museu-goeldi.br

Boletim: www.editora.museu-goeldi.br/humanas

Boletim no Issuu: www.issuu.com/bgoeldi_ch

Facebook: www.facebook.com/boletimgoeldiCH

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

BELTRÃO, J. F. and LEÃO, S. S. Um Boletim mais que centenário participa da Semana Especial do Blog SciELO em Perspectiva | Humanas [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2018 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2018/11/26/um-boletim-mais-que-centenario-participa-da-semana-especial-do-blog-scielo-em-perspectiva-humanas/

 

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Post Navigation